quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Estribilho para um motim

Que faz o ladino em torno da porta?
- Espreita.

Que faz o patrão tão perto da esteira?
- Ordena.

Que faz o capacho tão logo no tacho?
- Aceita.

Que faz o operário tão longe da fábrica?
- Quer chama.

No mundo em que tudo é moeda barata
a voz quando fala é caso de cana
tudo é motivo de medo e conversa
tudo se espreita, se ordena, se aceita.

Luis Gustavo

Formiga-rainha

Uns versos não valem;
mas vale o verso.

Quando a rainha deixa
o formigueiro para

aventurar-se entre objetos
maiores e pousa sobre

meu corpo ingênua
acredita, quem sabe,

que a salvarei do sopro,
do punho e da morte.

Não sabe que, entre dados,
somos duas faces da mesma

sorte. Dou-lhe um piparote.
E volta, ainda assim, ao ermo

das mãos que lhe nego.
Tem as antenas abertas e

com o abdome e a coroa da
cabeça ensaia uma dança.

As pinças, afiadas sob a carne
de meus dedos, são frágeis.

Talvez chame a cavalaria
das formigas, os aviadores,

a marinha mercante. Talvez
seja um deus, quem sabe.

Talvez sejamos nós,
talvez sejamos nós.

Talvez sejamos nós
mirando outro gigante.

Luis Gustavo

Vida Toda Linguagem

Vida toda linguagem, 
frase perfeita sempre, talvez verso, 
geralmente sem qualquer adjectivo, 
coluna sem ornamento, geralmente partida. 

Vida toda linguagem, 
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome 
aqui, ali, assegurando a perfeição 
eterna do período, talvez verso, 
talvez interjectivo, verso, verso. 
Vida toda linguagem, 
feto sugando em língua compassiva 
o sangue que criança espalhará — oh metáfora activa! 
leite jorrado em fonte adolescente, 
sémen de homens maduros, verbo, verbo. 
Vida toda linguagem, 
bem o conhecem velhos que repetem, 
contra negras janelas, cintilantes imagens 
que lhes estrelam turvas trajectórias. 
Vida toda linguagem — 
                como todos sabemos 
conjugar esses verbos, nomear 
esses nomes: 
             amar, fazer, destruir, 
homem, mulher e besta, diabo e anjo 
e deus talvez, e nada. 
Vida toda linguagem, 
vida sempre perfeita, 
imperfeitos somente os vocábulos mortos 
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra 
                                                 [a chuva, 
tenta fazê-la eterna — como se lhe faltasse 
outra, imortal sintaxe 
à vida que é perfeita 
            língua 
                      eterna. 

Mário Faustino, in 'Antologia Poética' 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Escrever é ditar para as mãos. Parece fácil, mas não é.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Intervalo

Fiz meu mais suave gesto de “infelizmente...” e desviei o olhar pro outro lado, o da rua, onde a muvuca escoava espessa em mão dupla. Táxis, viaturas, carangas turbinadas de garotões, som a mil, só pagode, bate-estaca clubber e hip-hop de mano. E um cortejo de pedestres onde se destacavam universitários descolados de classe média e uma garotada estilosa, neopunks, neo-hippies, neoemos, neoqualquer-merda, uma caterva nova que deu de frequentar a Augusta duns tempos pra cá. Sei lá. Não acho que essa gente combine muito com a putaria, que, para eles, é só um cenário urbano “radical”, ou merda assim. Duvido que alguém ali trace as putas. De qualquer jeito, ainda tinha muita puta desfilando pernas e peitos, bundas e caras pelas calçadas, entrando e saindo dos bútis e inferninhos, confabulando em grupinhos de três ou quatro, ou sozinhas esperando seus clientes nas calçadas, a velha e boa putaria do caralho.

Reinaldo Moraes, in Pornopopeia

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Prélude à L'après-midi d'un Faune

Obsessivo. É uma mais que necessidade ouvir sempre a mesma gravação do Prélude à L'après-midi d'un Faune, embora Débussy tenha sido tão - e tão bem - gravado por tanta gente. Talvez o arranjo, o regente, a orquestra, a hora. Mas sobretudo o registro: e além dele, o meu registro. Reproduzido em minutos distintos, todo som está fadado a encontrar um mundo diverso e único, um auditório sempre diferente daquele que o ouvira nem passado um segundo. Contra a abertura da obra, porém, contra as mudanças ocorridas no próprio ouvinte, recorrer ao mesmo registro, repetindo-o, é um protesto diante da passagem do tempo. É saber que o ouvinte não é o mesmo, nem a sala em que ele assiste, e ainda assim tocar. Contra os segundos que passam sorrateiros, contra as grandes viradas hermenêuticas, repetir é uma atividade manual e física. Como a agulha, que grava no vinil mais uma informação: a de que alguém, em um dado momento da vida, mais alguém resistiu ao tempo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Memória unespiana

Quando nós deixávamos o pátio em direção aos corredores, sentíamos que a queda dos pés direitos, de um bloco de concreto ou mesmo de uma parede inteira era iminente. As quinas desgastadas caíam aos pedaços, quando não se desfaziam feito farinha no tempo. E subíamos as escadas moles. E dávamos para um corredor como aquele primeiro, ladeado por salas enormes, altas, e banheiros em cuja entrada ainda se usavam folhas de madeira. Lá dentro uma certa paz e um certo frescor, garantidos pelo mármore, recomendavam paciência com as descargas e as torneiras de água, em geral pouco funcionais. Saindo do banheiro, dobrando duas direitas, o Centro Acadêmico, com sofás velhos, cheirando a mofo, quebrados. As salas de aula, então, nem se fala. Piso de madeira velha e rachada. Cadeiras universitárias de doer a bunda. E goteiras no teto. Muitas goteiras. Em caso de chuva mais forte, acomodavam-se os alunos em uma só região da classe. Ali, os estudantes e o professor se reuniam contra as poças de água e a chuva que, invariavelmente, tomava as aulas. No começo os mais novos achavam aquilo estranho e até mesmo indecente. Mas se acostumavam, como nós nos acostumamos, e pronto.

Sabia-se uma construção antiga, de janelas, portas, salas e salões vedados. Havia até uma capela, sempre trancada a fechadura, que jamais vi aberta. Certa vez pude ver pela fresta da porta oval vitrais antigos, contra a luz que vinha do outro lado do prédio, direto da rua. Ali um silêncio profundo de móveis amontoados abria espaço para os ruídos do passeio público. Além disso, nosso campus já fora um colégio de freiras. Sobre a arquitetura antiga, apareceriam salas feitas de biombos, portas de plástico, gabinetes de papel. Uma tristeza para os fantasmas e um labirinto para os viventes. Vez ou outro perdia-se um calouro. Às vezes, perdiam-se calouros propositadamente. Eu mesmo, com uma caloura, me perdi no labirinto de salas e ofícios. Mas não digo que fosse sem querer. E por vezes mesmo quem anda sozinho busca algo que só a busca mesma lhe revela.

E nunca reclamamos, de verdade. De brincadeira sim, reclamávamos. Dizíamos impropérios. Greve, piquete, revolução. Mas nós gostávamos do nosso prédio decadente. De suas paredes descascadas, de suas árvores abandonadas, velhas, independentes de cuidado. Dos bancos fincados sobre o cimento. Da exposição à chuva, aos ventos e ao cheiro da merenda, que subia do restaurante universitário. Do velho esquema de quadros negros e gizes brancos. Sem ventiladores, sem ar condicionado, sem eletrônicos, sem celulares. Sim, nós éramos felizes.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

No tempo em que

No tempo em que você oferecia os seios como se oferecem duas maçãs da terra - sei bem - e imaginava as latas de tinta derramadas sobre o ventre, quando não imaginava derramada outra tinta, de maior espessura e gosto mais lasso. No tempo em que você devorava com os dentes das pernas o lápis com que eu escrevera tua boca na parede, tua cara se debatendo contra a parede em busca de outros quartos. Onde pudéssemos expandir o que no tempo em que você dizia tantas coisas que eu mesmo não podia pegar, porque estavam difusas pela sala. Como os livros, as revistas, os copos, o cinzeiro. Como a luz, difusa entre os sofás e o tapete, entre um objeto e outro. No tempo em que você oferecia os pés, como iscas da perna que se insinuassem para fora da toca. Como as letras se insinuam para fora do alfabeto quando as falamos, sem pressa alguma. As tuas coxas que eu julgara já passadas uma estação reavivam-se contra espelhos. E eu dizia que jamais cometeria contos eróticos. Mas quando vi que gozava era tarde: descobri a franqueza da carne fraca e ainda mais, quando a coisa é o sexo, não somos de contos, mas de crônicas. E que somos também sujeitos crônicos. E tuas pernas, para sempre entrelaçadas. Não sei que de costas marinhas teus salgados omoplatas. E a linha curva do calcanhar e o cheiro das palavras. No tempo em que você fazia caras e bocas e caras e você sabia ah você sabia. Você já sabia que estamos acesos em noite escura. E que apagamos, como os vaga-lumes, depois de fazer a cama. E que raramente sentimos amor, senão um acridoce de memórias: novelo de tempos distantes se desenrolando. Como um tapete de leite no escuro do céu. E que talvez seja essa a forma do amor: desforme. Contra a correnteza. No tempo em que você oferecia os seios e a água corria solta nós nadávamos mas nunca imaginamos tanto. E os tapas na cara nos davam não a suspeita, mas a certeza de que o universo é maior, mais frio e mais indiferente do que pensavam nossos pais. E que de verdade nosso grito amplia toda solidão, de que retornamos acompanhados e redimidos. E que sozinhos estamos sozinhos afinal.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Azuli

Anduve como vosotros escarbando
la estrella interminable,
y en mi red, en la noche, me desperté desnudo,
única presa, pez encerrado en el viento.
Pablo Neruda, Canto General


não te achava
dúbia
mas te achava
azuli
como o peixe-
elétrico
para longe do
cardume

não te achava
pedra
mas te achava
areia
como o peixe
tateia
no rubro da teia
a tela

não te achava
físsil
mas te achava
fúria
como o vento
na água
prenhe de peixe,
areia e vento

e te achei toda
noite
por um momento

no denso azuli
ainda fraga
grão-luminosa

borrão de mar
raio na lente
peixe no vento.

Luis Gustavo, para Ventura

de passagem

Veio aqui uma mulher. Batia à porta e me chamava. A voz era dura, seca, frágil. Entre o escritório e o corredor ouvi seus punhos sacudindo um pingente e as pulseiras pesadas, os pés colados no chão. Não a conheci nem de primeira nem de segunda vista, mas ela sabia meu nome. Quem lhe emprestara a informação? Rua, prenome, casa, vida. Nada mais dizendo. Os olhos mansos entraram pela sala e ignoraram as estantes, o Kandinsky, a poltrona e um cinzeiro vazio. Mal tinha passado a chave na porta, me virei e ela estava nua: só de sapatilhas. Pôs-se de costas, apoiou os cotovelos na cauda do piano e me disse, oferecendo do rosto o perfil:

- Vem.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Chuva, capítulo I

Nós chegamos mesmo a acreditar que fossem as crianças dobrando papéis de alumínio lá fora, mas era a chuva carregada de trovões quem batia no portão de lata. E duas ou três vezes nós pensamos que a luz fosse acabar: a lâmpada na quartinha oscilava e zunia, a garrafinha de água meio que se apagava e no teto os insetos se debatiam, desnorteados. Ouvi ainda uma vez um latido solitário, a metros de distância, e dei conta de que a água subira tanto que já fazia ilha. No quarto de dois por três, ela abrira o embrulho para dividir, entre nós, o de passar o dia. E tínhamos ainda uma tarde pela frente. Cada um de nós se dirigia até ela, em silêncio, de cabeça baixa, para recolher de suas mãos algo que pesava mais do que uma migalha. Em silêncio, voltávamos cada um a seu posto, sobre o qual, aliás, e por ora, ela não dera maiores detalhes. A chuva entrou afinal pelas trincas da parede, e desfez lá fora o que eram meninos. Era a chuva mesmo, com raios e trovões que agora metiam medo. Mas eu achava que fazia parte do papel de cada um de nós ficar calado, esperando, no lusco-fusco de lâmpadas velhas, que alguma se queimasse, escutando os trovões e a chuva que abafava os latidos no quintal.
A chuva é um borrão na tarde.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sometime before

They thought we were waiting. So adroitly we refuted the garden rose the gardener had to cross the street full of doubts. What mama said sometimes, whatever. Should Big Bob get his gift, without embarrassment whatsoever. That his own language is a harsh one, for we would need sometime with him at the garage. When mama put everything at sale I was reading Moby Dick. And O! I sailed. When she wanted to clean the house I knew she was trying to be over something. And it was better if we were just fine fooling around with books and some papers. And friends came by and brought old packets full of albums no one could tell. Even Big Bob catched up when the dusted sting stole the silence from my room. That we could take the road to something. Upper and left we'd like to go. Always. So told our socks and shoes and old fashioned guitars. And we already had the intuition women, gardens and roads were the same at some level. And we, we were too.

Luis Gustavo

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Da sedução dos anjos

Anjos seduzem-se: nunca ou a matar.
Puxa-o só para dentro de casa e mete-lhe
a língua na boca e os dedos sem frete
Por baixo da saia até se molhar
Vira-o contra a parede, ergue-lhe a saia
E fode-o. Se gemer, algo crispado
Segura-o bem, fá-lo vir-se em dobrado
Para que do choque no fim te não caia.

Exorta-o a que agite bem o cú
Manda-o tocar-te os guizos atrevido
Diz que ousar na queda lhe é permitido
Desde que entre o céu e a terra flutue –

Mas não o olhes na cara enquanto fodes
E as asas, rapaz, não lhas amarrotes.

Bertolt Brecht (tradução de Aires Graça)

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

apontamento sobre os sonhos

Uno escribe para uno mismo.
Jorge Luis Borges

Quanto ficou de Borges no cinema, talvez, fosse bom perguntar. E difícil. Lembro do primeiro vislumbre que tive de Morangos Silvestres: no sonho do homem que sonhava, o sonhado jamais despertou. Sozinho em estação de trem, antiga e abandonada, alguém procura as horas no relógio sem ponteiros. Em preto-e-branco, a imagem denuncia a claridade imensa e insuportável do sonho, zona frequentemente obscura e de passagens, caminhos, lugares vedados. Foi sem querer que imaginei, no próprio protagonista do filme de Bergman, a imagem de Borges.

A visão onírica é, a um só tempo, metafórica e profética. A metáfora reside em redimensionar, para o plano figurado, a matéria insondável dos pensamentos: é como se o nosso corpo nos contasse, no sono, as soluções para problemas que o dia construiu em nós. Nesses casos, parece haver em nós um narrador que embaralha nossas próprias narrativas. Onisciente, só nos entrega no sono fragmentos de nossa própria história. A profecia, por outro lado, está em que o sonho talvez nos induza a traçar, com águas que dele descem, o nosso destino. Ainda é profético, porque nos ajuda a dissolver fronteiras e categorias que antes nos emperravam; e, por tudo isso, nos empurra para ação, quando é chegada a vigília.

Bibliotecas, labirintos, círculos ritualísticos de fogo. Os espaços do sono referenciam lugares materiais. Partimos do plano simbólico para o real, em uma espécie de sem-fim. Residimos não em uma dessas dimensões, mas no entre-elas. No duto por meio da qual ambas se retroalimentam. Mas se o feito sugere alguma dialética, o caminho é coisa diferente. Não há no círculo, no labirinto ou na biblioteca dois percursos idênticos. Estamos sempre tangenciando o caminho já feito, ainda que tentemos reproduzi-lo. E quando entramos no sonho, mesmo para feito inacabado, a imagem dissolvida, e que insistimos em reproduzir, transfigura a imagem passada para criar imagem nova. No labirinto, na biblioteca e nos círculos de fogo, o que nos move e o que nos mata é a busca. E ainda assim, buscamos.

Luis Gustavo

24 de setembro

E nós viramos. Não sei bem se minério, se bichos, se humanos. Mas viramos. Não sei bem se a face, se o corpo, se do avesso. Viramos. Não sei bem se o copo, se as mágoas, se o rosto. Nós viramos. Não sei bem se humanos, se as mãos, se humanos. Sobre a cama, se de lado. Se a bituca do cigarro. Mas viramos. As gavetas, as estantes, as saudades, as mentiras. Nós viramos. O tempo quando virava nós viramos. A ampulheta, muitas vezes; e outras tantas não viramos. E mentimos. Com a alma pendurada nos cabides nossos corpos nós viramos. Como as almas revoltosas no assoalho vão passando. Viramos a cachaça, o calendário, o ano. Mas a página, não. A página tem verso em branco. E perversos, nós viramos, desviramos. O que há de proibido - tecer no silêncio outro tempo. Nós fizemos. Dois a um. Quantos nós nós nos viramos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um bem freqüente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,

Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.

Gregório de Matos


apontamento musical





segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O jardim de delícias terrenas, de Hieronymus Bosch






No site Khan Academy, comentários que ajudam a entender a pintura de Bosch. Pode-se escolher pelas legendas em português, no canto direito inferior do vídeo, em subtitles, options, Portuguese.






segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O ANO TODO


Janeiro, já sinto
o calor fevereiro
das águas de março.
Abril, nunca minto
em coisas de amor.
É maio, porém, o
mês dos cortejos.
De junho o azul
impossível, a cor
de uns olhos que
em julho desejo.
Agosto é augusto,
preserve-me a vida
nos braços da virgem.
Setembro, se lembro...
Outubro, outrora,
outro dia ainda
falamos de amor.
Novembro, já quase
nos campos pintados.
No fundo da caixa,
depois de outro laço,
na area core do abraço:
dezembro, dezembro.

domingo, 23 de agosto de 2015

Já em agosto

Cette chose qu'on appelle 'exquise'.

Disse a mim mesmo que não voltaria ao corner onde vivíamos tropeçando um no outro. A lama na poça d'água, o lodo nas pedras antigas e o cheiro de umidade da rua da escola eram como que um aviso - e um ímã - para a queda. Ainda assim, os transeuntes passavam por ali. Eu mesmo, antes de topar com você, já tinha reparado nos óculos, nos olhos escuros, nos cabelos e nos dentes tão brancos. Recendidos na quase-noite, cheirando à hortelã que meu avô plantava, entre hortaliças do quintal de sua casa. Sobretudo quando a chuva varria leve nossos quintais: aí então o cheiro da hortelã atravessava o portal enferrujado para tomar todo o bairro. Chego a pensar que esse odor tenha conhecido ou pelo menos compartilhado da umidade das pedras daqui. Estamos longe de tudo, onde quer que estejamos. Se de repente chovesse, talvez pudesse associar o branco de seus dentes com os perfumes que meu avô, talvez o soubesse, fabricava. Sei que venho de uma linhagem de homens tiranos e mulheres inquietas. Mas eu sempre desconfiei que a tirania fosse um vislumbre estético da vida, e que a inquietude fosse uma desconfiança da passagem dela. Desligadas, todas essas coisas se misturam num borrão de nuvens. Como a barra da saia da chuva sobre a terra, vista de cima, de onde se agitam os cordões que nos colocaram, certo dia, na mesma esquina.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Que a luz vai se apagar

Que o universo em vez de explodir - como eles disseram um tempo atrás - agora vai se apagar. Sem mistério e sem alarde. Cientistas do Centro Internacional de Investigações Radioastronômicas da Austrália descobriram que o universo produz duas vezes menos energia do que dois bilhões de anos atrás. Em nossa escala finita, dois bi atrás são muita coisa; mas dois bi à frente não são nada, que isso! Estamos a um passo do futuro. Deu no rádio, na tv e na internet. Apocalípticos, religiosos e ambientalistas ficaram de queixo caído. Não será o dragão-de-sete-cabeças nem a emissão de gás carbono; não será o chicote da besta nem o derretimento do gelo. No imediato horizonte mediato - dê uma espiadinha pela janela - as luzes fora do quarto logo vão se acabar; e não será por conta da má gestão de hidrelétricas nem pela falta de água. Não será de sede, não será de fome, não será de raiva ou de amor. Nem sozinhos. Os bichos todos estamos na mesma barca. Ativistas, caçadores de prosopopeias e causas sem fim, defensores de um direito nato, eterno: vós também estais em extinção. E o que mais castiga a cabeça humana: a culpa não é de ninguém. Boa noite, tchau.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Nota sobre a filosofia

A filosofia não nos salva da dor, do tempo ruim, da falta de dinheiro. Até pelo contrário, em certa dose concentrada, talvez ela seja o botão vermelho de condenação, talvez ela mesma arraste todas essas pragas até nós. Mas há, com certeza, um mal de que a filosofia nos livra: o da mediocridade.

Luis Gustavo

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O homem de linho branco e panamá

Impecável, o homem de linho branco e panamá dobrou a esquina e subiu a rua pedregosa. Não digo que cambaleasse por causa das pedras, nem é certo que levasse na mão esquerda uma garrafa de cachaça: os de Santa Cruz sabiam seu jeito de andar. Mole e desajeitado, não surpreendia que levasse tanto tempo até a capelinha, no alto do morro. Uma fazenda e meia de pedras e pronto, era lá. Mas esses poucos metros, quanto mais subia, mais custava ganhar. Não digo que fosse pesado, nem é certo que fosse já velho: os de Santa Cruz ignoravam sua idade e seu nome. Mas viam-no, todas as tardes, dobrar a mesma esquina e subir a mesma rua pedregosa. Que um homem jovem exagere na boemia e volte tarde pra casa, que um bêbado contumaz refaça o círculo de seu vício dia após dia sem mudança de roteiro, tudo é coisa que se entende e se espera. O que não se espera nem se entende é que, sem beber nem fumar, sem ser gordo nem magro, nem velho nem moço, um homem ponha-se cotidiano, precisamente no mesmo horário - o das novelas vespertinas - a subir a mesma rua pedregosa, em direção à mesma igreja, sem que nunca lá chegue. Quem o visse de longe, quem estivesse em nosso barraco, no morro de cá, veria o que vejo: impecável, um homem de linho branco e panamá, as pernas em movimento, como que disjuntas, a subir eternamente, em procissão solitária, pela rua pedregosa das tardes sem saída.

Luis Gustavo

terça-feira, 2 de junho de 2015

Antes da viagem

Será quem me vêm buscar os anjos
amanhã mesmo?

Que idiomas devo decorar
na última noite de sono
- que sons, que letras, que gestos -
diante da passagem final?

Afinal, todos vamos
jamais acostumados à ideia
e nunca de mãos dadas
todos vamos embora.

Mas que idioma, pergunto
se devo esboçar algo que
pareça um riso
ou devo levar o rosto sério.

Virão graves e em silêncio
ou será o arrebatamento
como estar no pátio escolar
entre o banzo infinito
frio e indiferente
de crianças que nem pensam
no sino final?

Luis Gustavo Cardoso

quarta-feira, 27 de maio de 2015

CANTILENA PARA UM SONO BOM



Para o professor Rondon Rodrigues Ferreira

Na verdade, ficou muito bom o seu desenho. Só lhe escapou o riso que, não sei bem, é algo que está na cabeça de quem o conheceu. Talvez a mesma coisa se tivesse passado com a Monalisa, de Leonardo. Não podendo reproduzir o riso da memória do mensageiro, e nem de outro retrato que lhe servisse, o riso ficou por isso mesmo. Dizem que o risível está na altura do chão. É algo que coça, e se chega por baixo do humor. Você sabe, não é do humor baixo. Mas daquele bom, do atrabiliário, antigo, humor fino feito papo-de-anjo. Mas vamos lá, que é hora de dormir. E toda noite a gente dorme com o riso que pode ter.

Luis Gustavo

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O HOMEM SIMPLÓRIO




A simplicidade, essa solteirona risonha e corada que se encontra em qualquer canto do Brasil, tornou-se uma espécie de reguladora dos padrões morais camponeses que se meteram, desde cedo, em nossas cidades. A mudança de valores rurais para o meio urbano trouxe, na sacola do caipira, uma modalidade curiosa do que ele chama de "humildade". Estou falando no caipira mas, é óbvio, poderíamos tratar assim de muitos camponeses. É o que acontece com personagens como FIÓDOR PAVLÓVITCH KARAMÁZOV, de DOSTOIÉVSKI. A "humildade" camponesa é motivo de orgulho, o que pode soar um contrassenso. Mas é assim mesmo: o homem simplório e humilde tem orgulho de sê-lo, a escola da vida lhe deu a lição e, se por acaso topa com alguém que detém detalhes mais acurados sobre determinado assunto, tirados, além da experiência, do esforço lógico sistemático, seu orgulho pode ser facilmente ferido. E então retruca: ora, mas resumindo é isto que você quer dizer..., sem atinar que, certas coisas, se resumidas na forma, são reduzidas no conteúdo. Como ocorre com o velho KARAMÁZOV, o nosso homem tem orgulho de ser, mais do que simples, simplório. Mas há nele, sim, uma complexidade, talhada tosca em madeira antiga, uma complexidade humana difícil de apreender e que só pode ser mesmo objeto de um grande escultor e de uma grande literatura: o pendor para ofender-se. O homem que se ofende fácil demais é porque é orgulhoso demais, simplório  demais e difícil demais: mais difícil, mais simplório e mais orgulhoso do que ele próprio imagina.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Rua Júlio Otoni

Esta noite sonhei que estava na casa da rua Júlio Otoni. A decoração interna e mesmo a tinta nas paredes eram outras. Em torno de uma mesa comprida H. e T. recebiam convidados. Ceiávamos. Quando me percebi entre eles, pedi-lhes desculpa: Não sei bem por que fui embora. Eles riam. E disseram: Já sabíamos. Havia em tudo uma restrição, uma vigilância, uma palavra não dita mas de todos - quem sabe até de mim mesmo - conhecida. No sonho adormeci e sonhei. Cheguei a crer que a passagem na casa de H. e T. fosse apenas um sonho, mas abri os olhos e ainda estava lá. Desta vez, estirado no sofá da sala de meus hospedeiros. Então me chamaram, da biblioteca. E o silêncio, e o medo, e a restrição, e o ambiente de quatro anos atrás se restituíram com tamanha realidade que o sonho, não a suportando, se desfez.

LUIS GUSTAVO

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Sobre estantes e livros

Quantas estantes são precisas para caber um homem dentro? Para que ele se encaixe, será antes necessário remover os livros que, um dia, couberam no homem. Se é que couberam. Sem mencionar os livros não lidos, cheirando a velhos, cheirando a novos; os livros-presente, os livros-estantes, os livros que pedem abertura e ofício. Os livros ausentes, os que couberam no homem e os que quase não couberam, também contam? Devem ser removidos das estantes os livros emprestados? Os livros que levaram recados de amor, os livros que trouxeram tais recados, devem também remover-se? Difícil é saber que fazer com os livros habitados, há séculos - quem sabe - por traças e aranhas diminutas. Centenas de gerações penduradas, talvez, numa só vírgula impressa em relevo. Os livros-casa de insetos e incêndios, de cuja posse sabem melhor os insetos e o próprio fogo. Os livros de quina, os de cabeceira, os que servem de calço de mesa, os borrados de café e de tinta. Os livros que nunca saíram de seus lugares, e se integraram às paredes, e foram parar no bucho orgânico da casa. Os livros perdidos no sótão, no sofá da sala. Os livros que brigaram demais entre si: Tolstói versus Dostoiévksi, Brecht versus Stanislavksi, crítica versus criação. Mas ai dos livros desejados, é possível removê-los? Talvez se não os excluísse: quem sabe o homem se tornasse um livro mesmo? Um livro-sujeito, um livro-pensante, um livro com pernas, mãos, estômago, pulmão. Ai então.

LUIS GUSTAVO

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

02h02

Daqui ouço o barulho dos motores. Quem sabe serão os vizinhos. Quem sabe serão os sapos e quem sabe talvez as águas caudalosas de um poço artesiano. Daqui ouço o ronco de um carro na rua. Quem sabe serão meninos. Quem sabe serão os sapos e quem sabe talvez as pernas febris da mulher roçando o corpo de alguém. Daqui ouço a televisão que cai do terraço para espatifar-se no chão. Quem sabe talvez dê a volta no ar. Quem sabe não lhe tenham atirado, não. Quem sabe um tempo volte. Quem sabe os grilos, a malsã saudade, o calor infernal, a chuva no cio, o temporal. Quem sabe.