quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Os girassóis de Odessa

Quando a lua abre caminho
Entre os girassóis de Odessa
Sei de um perfume que arrepia os campos
Spasiba, Trachimbrod.

Em cada haste na terra fértil
Pétalas, feito moinhos, retêm do vento
O conto inquieto de outros cantos
Spasiba, Trachimbrod.

Sei de uns seios firmes, calmos, brancos
De cujas tetas mornas sabe a chuva
E o leite branco a esperar nas portas
Spasiba, Trachimbrod.

Luis Gustavo

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

pedra marina

E descíamos o recife até a pedra marina. Aquela pedra era um só olho machucado com as batidas do mar, das ondas do mar, de modo de que olhando de longe se podia ver bem pouco: mas chegando ela dava um buraco de dois por dois onde cabíamos nós três, e as espumas. Não era preta nem branca, mas de um cinza tão só. E quem dissesse que a restinga andava por perto, espiando nossas brincadeiras, de certo não sabia a visão que tínhamos da pedra: o continente parecia rodar léguas dali, contra o pino do sol detrás da neblina. Ali onde a maresia é mais densa, o sol quebrava de espessa neblina e quase não chegava até nós. Eu via os braços dela, as pernas dela, abrigando tudo que era jeito de luz, morando na água. Eternamente.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Assim como descobrimos tudo quando tudo se ausenta, também descobrimos nosso deus quando já não está lá. Neste instante nosso deus é a água.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

FROM THE HEART

A bit of Beatles
or would it be
a beat of bird?

O, let it be!


domingo, 26 de outubro de 2014

Sit right here beside me and help me to cry. Do you see that one bird crossing alone darkness to a higher sky? For its feathers are also dark. What it intends to be its onslaught but a fugue from its first color? O, color, you may say, is something else. An allegory. It's not.

área core

Sei que na área core espera-nos uma resposta. Tímida, ansiosa por chegar aos lábios silenciosos. Nada dirá de nossas roupas, de nossos sapatos já gastos. Embora saiba, como nós a sabemos, que tal foi nosso caminho. Que não descansaram os dedos, ainda que apertadas as sacolas em que trazíamos pedras antigas. Adivinhará, imagino, o nome do animal que nos entregou as tais pedras. E aqueles que deixaram sinais no chão, nos galhos e arbustos. Não eram índios; antes era deles a sombra detida sobre quatro patas e pássaros. Ainda naquela cidade, onde os pássaros convidam a um céu de chumbo. Sei que nos espera a resposta, a resposta, a difícil e vidente resposta. Ó lentos, alheios poderes do láudano.

Luis Gustavo

Noturno

Das muitas crises que trago, a ti esta anuncio:
na branca espuma das águas baterás com a morte.

Dos mestres-salas dos mares o grego arredio
contra a benção nagô, contra os dados da sorte.

Tuas penugens de sal e a turgidez dos umbigos
verás quantas mulheres, qual foi a consorte.

Teus braços, trinca e tridente de um deus mar bravio,
vão quebrar-se nas águas, nas águas do norte.

Luis Gustavo

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O filho

Estou grávido de um filho que jamais darei à luz. Seu esqueleto foi montado com o mesmo oco das salas vazias, seu corpo foi predito nas aulas de anatomia, seus olhos são duas esferas luminosas defletindo o escuro do pai. Meu rebento não virá ao mundo, e já fala outra língua. Não é que seja a língua dos anjos, mas tem algo de sagrado nela, de ferino nela, de desumano nela, que é cortante, ardente, e que em dois sussurros se poderia fingir ter aprendido. Ao contar os dias de sua morada, dei-lhe em sonho um nome que, acordado, ainda não pude decifrar. Não estou certo do sexo, nem do tamanho dos pés, nem das mãos, nem do número de dedos; mas sei que há nele um gênio que lâmpada alguma poderia dar à luz. Em sonho nossos dois sonhos se confundem e, trocando de plano, partimos de mãos dadas rumo outro sonho abissal.

Luis Gustavo

sábado, 18 de outubro de 2014

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Soneto do amor de Judas Iscariotes

Aqui marcada fui com dedos quentes.
Aqui, onde o silêncio é como a tarde.
Aqui, onde os outeiros pensam longe.
Aqui marcada fui, e ainda arde.

Aqui talvez os pés se elevassem
em vez de se afundarem sob a terra.
De timidez em tumidez, vão longe
os dedos mal roçados de saudade.

No tronco de outro tempo andava escrito;
nos galhos de outro espaço demarcado:
o corpo sem fervor tem vida breve.

O rosto é de rapaz, e é tão bonito!
No tronco o peso dele ainda é leve...
Aqui jaz toda tarde um enforcado.

Luis Gustavo

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A solidão do soldado

A solidão do soldado

Nem adianta espernear:
mais cedo ou mais tarde
a solidão colhe todo boneco
e põe cada qual no seu canto.

luis gustavo

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Teus olhos se me encontram descampado

Teus olhos se me encontram descampado,
o peito nu beirando o céu deserto,
cascos quebrados sobre o chão-carvalho,
me querem nunciar destino incerto.

Teus olhos se me quebram como o orvalho,
qual lacrimoso sal, sal que é deserto,
põem-me no campo feito o espantalho
que esperasse a vida, o sopro eterno.

Já sei que tens um olho marejado
e outro seco de sertão, seco e deserto
- pois contra toda sorte o teu olhar é terno -

de mim não sei se águas hai escapado,
de mim sertões não sei melhor desperto,
com tantos sóis não sei como hai inverno.

Luis Gustavo Cardoso

A mão

Depois de tantos esforços, ei-la cansada: a mão.
Contra o branco do papel, carvão.
Contra o braço que lhe deu razão.
Contra o beco que há na boca: não.
Contra toda a natureza, a mão.

Depois de feita a criação.
Do verbo mais concreto.
Da sílaba perfeita destacada da amplidão.
A rima rude.
A rima rude então.

Para dizer à mulher que o amor chegou
os dois dedos da mão
o médio e o anular.

A flor-desolação
desabrochará quando haja umidade
e não sol.

Luis Gustavo Cardoso

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Carta para Basta

Faz tempo não lhe escrevo, Basta. De longe todo tipo de besteira é motivo pra eu me lembrar de você. Outro dia o taxista fez uma curva fechada, procurei o puta-que-pariu e nada: lembrei de você. Quando Errol Garner começou a tocar "My funny Valentine" numa gravação de 63 no canal Curta!: lembrei de você. Dizem que o amor acabou. Outra vez em outra cidade, percebo que é costume do amor correr o meio-fio e entrar pela boca de lobo mais perto de casa. Da saída de incêndio do edifício vejo os travecos, nossos novos malandros, de navalha em punho: assaltando o coração de outro macho. Recordo aquele nosso amigo que se dizia "malandro", o rei da brasilidade. Um dia ele chamou de "tambores de Angola" o som que vinha vizinho do nosso campus. Que nada, eram só as nossas pretas preparando o rango da moçada. Vestido de algodão sobre o jeans desbotado e um canto rouco, rouco de tanto trabalho. Recordei também o cretino que veio nos encher o saco durante uma festa da faculdade, falando em Scott Fitzgerald. Recordei então todos os cretinos, anotados e não anotados em nosso caderninho, e tive uma saudade imensa de você. De pouco em pouco vou esquecendo o lirismo. Acredito mesmo que esqueci como se escrevem aquelas coisas todas. Mas ainda acredito que a palavra amor seja apenas um anagrama, um anatema para tantos outros buracos de lobo por onde invariavelmente corremos, seguindo o meio-fio. Basta, você faz muita falta: seus olhos bastos de tão mansos e uma cadeira vazia.

Luis Gustavo

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Brevidades

Céu de chumbo na capital francana,
chuva fina e café forte.

Lembrei agora de umas brevidades
que jamais pude morder outra vez:
brevidades.

luis gustavo

terça-feira, 6 de maio de 2014

Na cidade

No começo te queria
como a criança quer
a sombra intocável.

Nas vitrines luminosas
tuas vestes dispersas
- saias, sapatos, meias -
denunciavam a solidão
de um manequim sem corpo.

Depois comecei a querer-te
com as mãos, com os dedos...

por acaso rocei teus pés
numa loja da quinta avenida
e um coração batia forte.

Tarso de louça fina
trincada no vinco entre dedos
entre unhas e a imagem pétrea
das falanges.

Mas que ferve é buscar-te
com boca, com língua, com dentes
à procura de espaços ausentes
na cidade onde tudo é desejo.

luis gustavo cardoso





segunda-feira, 5 de maio de 2014

Na cidade

Quem quer que me quisesse, quem sabe,
mais que à película fina e à férrea face,
quisera Deus, soubesse o que há no centro

que habita uma cidade em meu corpo
de ruas e avenidas por onde a gravidade
convida a pássaros de chumbo e solidão.

luis gustavo cardoso

quarta-feira, 19 de março de 2014

This letter was found at a seafarm, nearby home. Not a single word was changed.

Dearest woman,

may you please me with this utmost favor: say a woman of your past that a man of mine brought me here - with ink and paper - to tell you he loves her.

Yours always,

Me.