segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Escrever é ditar para as mãos. Parece fácil, mas não é.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Intervalo

Fiz meu mais suave gesto de “infelizmente...” e desviei o olhar pro outro lado, o da rua, onde a muvuca escoava espessa em mão dupla. Táxis, viaturas, carangas turbinadas de garotões, som a mil, só pagode, bate-estaca clubber e hip-hop de mano. E um cortejo de pedestres onde se destacavam universitários descolados de classe média e uma garotada estilosa, neopunks, neo-hippies, neoemos, neoqualquer-merda, uma caterva nova que deu de frequentar a Augusta duns tempos pra cá. Sei lá. Não acho que essa gente combine muito com a putaria, que, para eles, é só um cenário urbano “radical”, ou merda assim. Duvido que alguém ali trace as putas. De qualquer jeito, ainda tinha muita puta desfilando pernas e peitos, bundas e caras pelas calçadas, entrando e saindo dos bútis e inferninhos, confabulando em grupinhos de três ou quatro, ou sozinhas esperando seus clientes nas calçadas, a velha e boa putaria do caralho.

Reinaldo Moraes, in Pornopopeia

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Prélude à L'après-midi d'un Faune

Obsessivo. É uma mais que necessidade ouvir sempre a mesma gravação do Prélude à L'après-midi d'un Faune, embora Débussy tenha sido tão - e tão bem - gravado por tanta gente. Talvez o arranjo, o regente, a orquestra, a hora. Mas sobretudo o registro: e além dele, o meu registro. Reproduzido em minutos distintos, todo som está fadado a encontrar um mundo diverso e único, um auditório sempre diferente daquele que o ouvira nem passado um segundo. Contra a abertura da obra, porém, contra as mudanças ocorridas no próprio ouvinte, recorrer ao mesmo registro, repetindo-o, é um protesto diante da passagem do tempo. É saber que o ouvinte não é o mesmo, nem a sala em que ele assiste, e ainda assim tocar. Contra os segundos que passam sorrateiros, contra as grandes viradas hermenêuticas, repetir é uma atividade manual e física. Como a agulha, que grava no vinil mais uma informação: a de que alguém, em um dado momento da vida, mais alguém resistiu ao tempo.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Memória unespiana

Quando nós deixávamos o pátio em direção aos corredores, sentíamos que a queda dos pés direitos, de um bloco de concreto ou mesmo de uma parede inteira era iminente. As quinas desgastadas caíam aos pedaços, quando não se desfaziam feito farinha no tempo. E subíamos as escadas moles. E dávamos para um corredor como aquele primeiro, ladeado por salas enormes, altas, e banheiros em cuja entrada ainda se usavam folhas de madeira. Lá dentro uma certa paz e um certo frescor, garantidos pelo mármore, recomendavam paciência com as descargas e as torneiras de água, em geral pouco funcionais. Saindo do banheiro, dobrando duas direitas, o Centro Acadêmico, com sofás velhos, cheirando a mofo, quebrados. As salas de aula, então, nem se fala. Piso de madeira velha e rachada. Cadeiras universitárias de doer a bunda. E goteiras no teto. Muitas goteiras. Em caso de chuva mais forte, acomodavam-se os alunos em uma só região da classe. Ali, os estudantes e o professor se reuniam contra as poças de água e a chuva que, invariavelmente, tomava as aulas. No começo os mais novos achavam aquilo estranho e até mesmo indecente. Mas se acostumavam, como nós nos acostumamos, e pronto.

Sabia-se uma construção antiga, de janelas, portas, salas e salões vedados. Havia até uma capela, sempre trancada a fechadura, que jamais vi aberta. Certa vez pude ver pela fresta da porta oval vitrais antigos, contra a luz que vinha do outro lado do prédio, direto da rua. Ali um silêncio profundo de móveis amontoados abria espaço para os ruídos do passeio público. Além disso, nosso campus já fora um colégio de freiras. Sobre a arquitetura antiga, apareceriam salas feitas de biombos, portas de plástico, gabinetes de papel. Uma tristeza para os fantasmas e um labirinto para os viventes. Vez ou outro perdia-se um calouro. Às vezes, perdiam-se calouros propositadamente. Eu mesmo, com uma caloura, me perdi no labirinto de salas e ofícios. Mas não digo que fosse sem querer. E por vezes mesmo quem anda sozinho busca algo que só a busca mesma lhe revela.

E nunca reclamamos, de verdade. De brincadeira sim, reclamávamos. Dizíamos impropérios. Greve, piquete, revolução. Mas nós gostávamos do nosso prédio decadente. De suas paredes descascadas, de suas árvores abandonadas, velhas, independentes de cuidado. Dos bancos fincados sobre o cimento. Da exposição à chuva, aos ventos e ao cheiro da merenda, que subia do restaurante universitário. Do velho esquema de quadros negros e gizes brancos. Sem ventiladores, sem ar condicionado, sem eletrônicos, sem celulares. Sim, nós éramos felizes.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

No tempo em que

No tempo em que você oferecia os seios como se oferecem duas maçãs da terra - sei bem - e imaginava as latas de tinta derramadas sobre o ventre, quando não imaginava derramada outra tinta, de maior espessura e gosto mais lasso. No tempo em que você devorava com os dentes das pernas o lápis com que eu escrevera tua boca na parede, tua cara se debatendo contra a parede em busca de outros quartos. Onde pudéssemos expandir o que no tempo em que você dizia tantas coisas que eu mesmo não podia pegar, porque estavam difusas pela sala. Como os livros, as revistas, os copos, o cinzeiro. Como a luz, difusa entre os sofás e o tapete, entre um objeto e outro. No tempo em que você oferecia os pés, como iscas da perna que se insinuassem para fora da toca. Como as letras se insinuam para fora do alfabeto quando as falamos, sem pressa alguma. As tuas coxas que eu julgara já passadas uma estação reavivam-se contra espelhos. E eu dizia que jamais cometeria contos eróticos. Mas quando vi que gozava era tarde: descobri a franqueza da carne fraca e ainda mais, quando a coisa é o sexo, não somos de contos, mas de crônicas. E que somos também sujeitos crônicos. E tuas pernas, para sempre entrelaçadas. Não sei que de costas marinhas teus salgados omoplatas. E a linha curva do calcanhar e o cheiro das palavras. No tempo em que você fazia caras e bocas e caras e você sabia ah você sabia. Você já sabia que estamos acesos em noite escura. E que apagamos, como os vaga-lumes, depois de fazer a cama. E que raramente sentimos amor, senão um acridoce de memórias: novelo de tempos distantes se desenrolando. Como um tapete de leite no escuro do céu. E que talvez seja essa a forma do amor: desforme. Contra a correnteza. No tempo em que você oferecia os seios e a água corria solta nós nadávamos mas nunca imaginamos tanto. E os tapas na cara nos davam não a suspeita, mas a certeza de que o universo é maior, mais frio e mais indiferente do que pensavam nossos pais. E que de verdade nosso grito amplia toda solidão, de que retornamos acompanhados e redimidos. E que sozinhos estamos sozinhos afinal.