terça-feira, 3 de novembro de 2015

No tempo em que

No tempo em que você oferecia os seios como se oferecem duas maçãs da terra - sei bem - e imaginava as latas de tinta derramadas sobre o ventre, quando não imaginava derramada outra tinta, de maior espessura e gosto mais lasso. No tempo em que você devorava com os dentes das pernas o lápis com que eu escrevera tua boca na parede, tua cara se debatendo contra a parede em busca de outros quartos. Onde pudéssemos expandir o que no tempo em que você dizia tantas coisas que eu mesmo não podia pegar, porque estavam difusas pela sala. Como os livros, as revistas, os copos, o cinzeiro. Como a luz, difusa entre os sofás e o tapete, entre um objeto e outro. No tempo em que você oferecia os pés, como iscas da perna que se insinuassem para fora da toca. Como as letras se insinuam para fora do alfabeto quando as falamos, sem pressa alguma. As tuas coxas que eu julgara já passadas uma estação reavivam-se contra espelhos. E eu dizia que jamais cometeria contos eróticos. Mas quando vi que gozava era tarde: descobri a franqueza da carne fraca e ainda mais, quando a coisa é o sexo, não somos de contos, mas de crônicas. E que somos também sujeitos crônicos. E tuas pernas, para sempre entrelaçadas. Não sei que de costas marinhas teus salgados omoplatas. E a linha curva do calcanhar e o cheiro das palavras. No tempo em que você fazia caras e bocas e caras e você sabia ah você sabia. Você já sabia que estamos acesos em noite escura. E que apagamos, como os vaga-lumes, depois de fazer a cama. E que raramente sentimos amor, senão um acridoce de memórias: novelo de tempos distantes se desenrolando. Como um tapete de leite no escuro do céu. E que talvez seja essa a forma do amor: desforme. Contra a correnteza. No tempo em que você oferecia os seios e a água corria solta nós nadávamos mas nunca imaginamos tanto. E os tapas na cara nos davam não a suspeita, mas a certeza de que o universo é maior, mais frio e mais indiferente do que pensavam nossos pais. E que de verdade nosso grito amplia toda solidão, de que retornamos acompanhados e redimidos. E que sozinhos estamos sozinhos afinal.

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