terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Sobre os livros

Algo fascinante nos livros é que eles conservam, apesar de nossos vãos esforços por fixar uma interpretação, o infinito. É dizer que os livros, quietos nas estantes das casas, nos fundos de livrarias, nas bibliotecas, conservam um poder e um mistério: o poder de sempre luzir sob uma luz diferente, que é a consciência de seu novo leitor; o mistério de replicar seus sentidos a uma potência de base infinita, porque nenhum leitor é como outro. São esse mistério e esse poder que definem os livros como algo fora da tirania, um objeto incompatível com a tirania do intérprete.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Two English Poems



                          I

   

   The useless dawn finds me in a deserted street-

      corner; I have outlived the night.

   Nights are proud waves; darkblue topheavy waves

      laden with all the hues of deep spoil, laden with

      things unlikely and desirable.

   Nights have a habit of mysterious gifts and refusals,

      of things half given away, half withheld,

      of joys with a dark hemisphere. Nights act

      that way, I tell you.

   The surge, that night, left me the customary shreds

      and odd ends: some hated friends to chat

      with, music for dreams, and the smoking of

      bitter ashes.  The things my hungry heart

      has no use for.

   The big wave brought you.

   Words, any words, your laughter; and you so lazily

      and incessantly beautiful.  We talked and you

      have forgotten the words.

   The shattering dawn finds me in a deserted street

      of my city.

   Your profile turned away, the sounds that go to

      make your name, the lilt of your laughter:

      these are the illustrious toys you have left me.

   I turn them over in the dawn, I lose them, I find

      them; I tell them to the few stray dogs and

      to the few stray stars of the dawn.

   Your dark rich life ... 

   I must get at you, somehow; I put away those 

      illustrious toys you have left me, I want your

      hidden look, your real smile -- that lonely,

      mocking smile your cool mirror knows.

   

                       II

   

   What can I hold you with?

   I offer you lean streets, desperate sunsets, the

      moon of the jagged suburbs.

   I offer you the bitterness of a man who has looked

      long and long at the lonely moon.

   I offer you my ancestors, my dead men, the ghosts

      that living men have honoured in bronze:

      my father's father killed in the frontier of

      Buenos Aires, two bullets through his lungs,

      bearded and dead, wrapped by his soldiers in

      the hide of a cow; my mother's grandfather

      --just twentyfour-- heading a charge of

      three hundred men in Peru, now ghosts on

      vanished horses.

   I offer you whatever insight my books may hold, 

      whatever manliness or humour my life.

   I offer you the loyalty of a man who has never

      been loyal.

   I offer you that kernel of myself that I have saved,

      somehow --the central heart that deals not

      in words, traffics not with dreams, and is

      untouched by time, by joy, by adversities.

   I offer you the memory of a yellow rose seen at

      sunset, years before you were born.

   I offer you explanations of yourself, theories about

      yourself, authentic and surprising news of 

      yourself.

   I can give you my loneliness, my darkness, the

      hunger of my heart; I am trying to bribe you 

      with uncertainty, with danger, with defeat.

   

   

                     - Jorge Luis Borges (1934)

sábado, 17 de outubro de 2020

ÁUREAS & NOSTOS


 

a jazante tâmara queixa às águas

e de um chão de areia logo larga:

a grossa casca a sua noz enfralda

e na corrente desce, deixa a casa


no burburinho choro das camisarias

uma qualquer memória dos sinistros

tons da tâmara como se de oliveiras

e repartidas cãs, os deixai-disso


mais descascam abusões os boticários

quando é ouro o odor conflagrado:

das senhoras de sargaço e adágios

uma noz se abre à foz, nunca aos lábios.


Poema meu que brinca com os versos de um poema de Marcus Fabiano Gonçalves: OS BONS VENTOS (BÓREAS& NOTOS)

terça-feira, 22 de setembro de 2020

O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE

Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.

 João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Além da linha de mar

Às vezes subo à superfície aos poucos: transito entre o cardume e a sombra das ondas, encosto na lâmina de água as sensíveis que tenho, pressinto a luz do dia defletida. Assim sei de novo: sob o mar é tudo corriqueiro e as margens de transição estão dispostas como quem as fez um dia, como quem as pôs móveis e salgadas sob o seco-azul-do-céu. Vou consciente da falta de meus elementos e me atrevo só a antever o que é vário. Sei que chamam pássaros, homens marinheiros, arpões. Uma vez até vi a solidão de uma criança que atravessava sozinha a costa. Vejo-os ainda, como traços da memória deixada no mar, cena no lance espelhado das gotas com que o mar dá presentes a si mesmo, depois de as ter lançado para longe de si. Mas o mar é mais vasto e mistura todas as histórias, as põe difusas, confunde os seus portadores, sepulta os seus esquecidos, corrói âncoras e outros instrumentos de fixar passagens.

Às vezes, porém, quando de costume estou no fundo, longe dos cardumes, mais que sozinho, só, sinto em mim um desejo de lançar-me no abismo da superfície, romper com o espelho de água, lançar-me no vazio do ar, onde me falta o elemento necessário, a água salina e temperada. Sinto em mim um desejo de ser capturado pelo ar, contra a regra das correntes gravitacionais. Desejo lançar-me ao bico do albatroz que não me devore sem antes fazer-me afogar no mais rarefeito, de onde talvez uma corrente de ar carregue meu corpo para as criaturas insones que vigiam de cima do amontoado de vapores que, segundo li dias atrás pelo vidro da garrafa, chamam-se nuvens. Que ali tais criaturas insones aceitem minha abdução voluntária, o sequestro que farei de mim mesmo contra o mar, para mostrar-lhe, e a todas as coisas demais, que não me contento com isto de ter havido um dia, de ter um dia ocupado vaga na forma solidária do cardume ou na incalculada solidão de bicho do mar.