domingo, 29 de maio de 2016

Os lá de casa

Tu sabes o que é não ter perto o irmão caçula? Deixar-se estar imaginando, passando-lhe as tuas mãos entre os seus cabelos macios, que crescem mais rápido e mais grossos. E a irmã do meio, cuja sombra cresce e se afasta no chão? Cujo sorriso denuncia a mudança de fases, como a lua, de noite, como o sol, de dia, num ir e vir inconstante. E a voz da mãe, que chama da cozinha? Panelas, colher-de-pau, pratos sobre a mesa. E sua pergunta fundamental, simples, definitiva, em seus lábios mais sincera, ecoando sobre os tempos: ''tudo bem?'' Tu sabes o que é ter longe de si o sorriso franco, aberto, sereno do pai? Seus cabelos já grisalhos, poucos, que o vento acha na tarde de domingo, quando na cadeira de vime e de balanço. E os cães de todos: primas, tios, correndo pelas garagens, em cada porta atravessando casas, cidades inteiras, para costurar a história de uma só família. E a memória da avó, para sempre modificada em nossa própria memória? Diz pra mim uma coisinha: tu sabes bem o que é não ter perto os amigos? Sua presença, silenciosa ou plena de ruídos, firme, atenta. Seu corpo que é um corpo só de escutas, de cuidados. Sua alma, que é uma alma de caminhos, de empreitadas, de um não-tempo, de um sempre-já. Tu sabes o que é imaginar a tua cidade, como ela era, sabendo-a em cada instante radicalmente mudada? Imaginar as praças que o concreto suprimiu em tua ausência, as árvores de corações partidos, a velha escola, a velha rua, a velha casa. Tu sabes? Pois é.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

relato de viagem

Entre o mandarim e o grego um medo sem fim. há muito tempo mandei-me de aqui. outro dia anunciaram um navio e meteram-me nele. desertos atravessam-me mas nada nada nada calou mais fundo do que a água parada do mar morto, donde vieram os espíritos inquietos. puseram sobre minha cabeça uma coroa de espinhos. uma senhorinha já depois dos quarenta desceu-me as calças. a multidão chorava. subi o cáucaso até onde me disseram que havia moiras. e soltaram os seios no tempo. eram negras, beduínas, ruivas, camponesas. deram-me o leite de cabra e apontaram-me os campos sem lavra. chovia, fazia frio em são paulo. senti de longe que me escrevias esta carta de despedida. eram os cães que você enterrara no quintal. pedi em sofia que lhes rezassem uma missa. tomei uma aeronave de cujos assentos me olhavam crianças e velhos dados como perdidos. e não sei bem se a comissária oferecia-me whisky ou lições de romeno. os caixilhos de som tocavam bach e estávamos todos no céu. quando abri os olhos, mirava as torres de burma enquanto o balão descia. fui à praia de baía cerrada e alto-mar. dispersas, conchas anunciavam a entrada do castelo. toquei a areia das muradas e eram teus seios firmes que se desfaziam, em minhas mãos, como o sal no sargaço e as pipas no vento.

Luis Gustavo

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Ao deus do tempo

Ao deus do tempo,
que subverteu as cores de maio,
e pôs sobre nossas cabeças nuvens espessas,
rogamos piedade.

Ao deus de muitas cabeças
que empalidece flores e folhas
colhendo para o futuro a morte necessária
rogamos piedade.

Ao deus que aos seus aflige,
com o fito da esfinge,
com o verso da saudade.

Ao deus do filtro turvo,
dos olhos sujos, da finitude,
rogamos outra morte.

A morte da saúde,
o fim da saúde e da saúva,
a sequidão da verdade.

E assim quebremos como a casca dura
e o caule que há sem verga em cada árvore.

Tornemos pó ao pó, poeira que há na tarde,
e assim saber de agosto o denso, o espesso;
a grossa tempestade.

terça-feira, 10 de maio de 2016

Jamais mostres teu poema a um dinossauro

Jamais mostres teu poema a um dinossauro. O tronco vergado e a boca que rumina o denunciam. Está sentado sobre a idade da pedra e tem preguiça de levantar-se. O pescoço é um torcicolo e, na procura da carne, não vê coração. Se lhe entregas teus escritos num papel-carta, não lhe cabe nas mãos.

Pensa bem: o couro é grosso. Olha só: tem as unhas limadas. Imagina: o hálito de dragão.  E a língua comprida, nem se fala. Os olhos de sempre-amarelo-hepatite.

Jamais mostres teu poema a um dinossauro. Nem lhe reveles teus sentimentos: o que fabricas noite adentro, os livros que lês, os discos que colecionas, tuas fábulas e alusões.

O dinossauro é, desde tempos imemoriais, uma besta especializada.


Saudadinha é coisa à toa.

domingo, 8 de maio de 2016