Às vezes subo à superfície aos poucos: transito entre o cardume e a sombra das ondas, encosto na lâmina de água as sensíveis que tenho, pressinto a luz do dia defletida. Assim sei de novo: sob o mar é tudo corriqueiro e as margens de transição estão dispostas como quem as fez um dia, como quem as pôs móveis e salgadas sob o seco-azul-do-céu. Vou consciente da falta de meus elementos e me atrevo só a antever o que é vário. Sei que chamam pássaros, homens marinheiros, arpões. Uma vez até vi a solidão de uma criança que atravessava sozinha a costa. Vejo-os ainda, como traços da memória deixada no mar, cena no lance espelhado das gotas com que o mar dá presentes a si mesmo, depois de as ter lançado para longe de si. Mas o mar é mais vasto e mistura todas as histórias, as põe difusas, confunde os seus portadores, sepulta os seus esquecidos, corrói âncoras e outros instrumentos de fixar passagens.
Às vezes, porém, quando de costume estou no fundo, longe dos cardumes, mais que sozinho, só, sinto em mim um desejo de lançar-me no abismo da superfície, romper com o espelho de água, lançar-me no vazio do ar, onde me falta o elemento necessário, a água salina e temperada. Sinto em mim um desejo de ser capturado pelo ar, contra a regra das correntes gravitacionais. Desejo lançar-me ao bico do albatroz que não me devore sem antes fazer-me afogar no mais rarefeito, de onde talvez uma corrente de ar carregue meu corpo para as criaturas insones que vigiam de cima do amontoado de vapores que, segundo li dias atrás pelo vidro da garrafa, chamam-se nuvens. Que ali tais criaturas insones aceitem minha abdução voluntária, o sequestro que farei de mim mesmo contra o mar, para mostrar-lhe, e a todas as coisas demais, que não me contento com isto de ter havido um dia, de ter um dia ocupado vaga na forma solidária do cardume ou na incalculada solidão de bicho do mar.
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