quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Encontro com Morgana




Também nesta sétima vida topei com Morgana. Sentada, de bermuda jeans, jaqueta amarrada na cintura sobre a blusinha verde. O perfil reto e perpendicular, mirava impassível, do outro lado do portão de embarque, alguma obra de arte. Os seus olhos, entre verde-escuros-castanhos, eram duas setas que alvejavam quadros flamengos que ocupavam toda uma parede do aeroporto de Bruxelas. Não sei bem: mentiras históricas, anjos indecentes, incestos, fratricídio, tintas. Não sei bem o que distraía Morgana de minha presença. Teria notado, talvez, que por duas vezes tive de amarrar os cadarços da minha botina, já vergonhosa e muito usada pelo tempo? Teria notado que meu telefone tocara em uma hora inoportuna, justo quando eu refletia sobre aquele encontro? Não reconhecera quem o acaso lhe pusera ao lado, sob outra face, em outro corpo, vestindo outro hábito, tendo nas mãos o mapa traçado por outros caminhos? Sentado a alguns metros de distância, no entanto, eu adivinhava cada letra de seu nome gravada nas passagens que conduziam a São Paulo. Adivinhava o odor que subia das lezírias que margeiam a costa inglesa de Suffolk, com suas capelas e faróis marcando os caminhos do viajante. Sabia que numa dessas torres as mãos de Morgana haviam tocado, em vão, um antigo astrolábio e os sinos da igreja, cuja música informe e carregada ainda agora ouço bater. Naquela mesma torre de igreja, uma janela deixava entrar o vento que sopra dos canais e, além deles, do Mar do Norte. E de longe senti que as águas-vivas da praia de Scheveningen, n'A Haia, de corpo e tentáculos prateados, rumavam em cardumes extensos e luminosos, pela noite que descia insone, em nossa direção.

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