segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Azuli

Anduve como vosotros escarbando
la estrella interminable,
y en mi red, en la noche, me desperté desnudo,
única presa, pez encerrado en el viento.
Pablo Neruda, Canto General


não te achava
dúbia
mas te achava
azuli
como o peixe-
elétrico
para longe do
cardume

não te achava
pedra
mas te achava
areia
como o peixe
tateia
no rubro da teia
a tela

não te achava
físsil
mas te achava
fúria
como o vento
na água
prenhe de peixe,
areia e vento

e te achei toda
noite
por um momento

no denso azuli
ainda fraga
grão-luminosa

borrão de mar
raio na lente
peixe no vento.

Luis Gustavo, para Ventura

de passagem

Veio aqui uma mulher. Batia à porta e me chamava. A voz era dura, seca, frágil. Entre o escritório e o corredor ouvi seus punhos sacudindo um pingente e as pulseiras pesadas, os pés colados no chão. Não a conheci nem de primeira nem de segunda vista, mas ela sabia meu nome. Quem lhe emprestara a informação? Rua, prenome, casa, vida. Nada mais dizendo. Os olhos mansos entraram pela sala e ignoraram as estantes, o Kandinsky, a poltrona e um cinzeiro vazio. Mal tinha passado a chave na porta, me virei e ela estava nua: só de sapatilhas. Pôs-se de costas, apoiou os cotovelos na cauda do piano e me disse, oferecendo do rosto o perfil:

- Vem.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Chuva, capítulo I

Nós chegamos mesmo a acreditar que fossem as crianças dobrando papéis de alumínio lá fora, mas era a chuva carregada de trovões quem batia no portão de lata. E duas ou três vezes nós pensamos que a luz fosse acabar: a lâmpada na quartinha oscilava e zunia, a garrafinha de água meio que se apagava e no teto os insetos se debatiam, desnorteados. Ouvi ainda uma vez um latido solitário, a metros de distância, e dei conta de que a água subira tanto que já fazia ilha. No quarto de dois por três, ela abrira o embrulho para dividir, entre nós, o de passar o dia. E tínhamos ainda uma tarde pela frente. Cada um de nós se dirigia até ela, em silêncio, de cabeça baixa, para recolher de suas mãos algo que pesava mais do que uma migalha. Em silêncio, voltávamos cada um a seu posto, sobre o qual, aliás, e por ora, ela não dera maiores detalhes. A chuva entrou afinal pelas trincas da parede, e desfez lá fora o que eram meninos. Era a chuva mesmo, com raios e trovões que agora metiam medo. Mas eu achava que fazia parte do papel de cada um de nós ficar calado, esperando, no lusco-fusco de lâmpadas velhas, que alguma se queimasse, escutando os trovões e a chuva que abafava os latidos no quintal.
A chuva é um borrão na tarde.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Sometime before

They thought we were waiting. So adroitly we refuted the garden rose the gardener had to cross the street full of doubts. What mama said sometimes, whatever. Should Big Bob get his gift, without embarrassment whatsoever. That his own language is a harsh one, for we would need sometime with him at the garage. When mama put everything at sale I was reading Moby Dick. And O! I sailed. When she wanted to clean the house I knew she was trying to be over something. And it was better if we were just fine fooling around with books and some papers. And friends came by and brought old packets full of albums no one could tell. Even Big Bob catched up when the dusted sting stole the silence from my room. That we could take the road to something. Upper and left we'd like to go. Always. So told our socks and shoes and old fashioned guitars. And we already had the intuition women, gardens and roads were the same at some level. And we, we were too.

Luis Gustavo

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Da sedução dos anjos

Anjos seduzem-se: nunca ou a matar.
Puxa-o só para dentro de casa e mete-lhe
a língua na boca e os dedos sem frete
Por baixo da saia até se molhar
Vira-o contra a parede, ergue-lhe a saia
E fode-o. Se gemer, algo crispado
Segura-o bem, fá-lo vir-se em dobrado
Para que do choque no fim te não caia.

Exorta-o a que agite bem o cú
Manda-o tocar-te os guizos atrevido
Diz que ousar na queda lhe é permitido
Desde que entre o céu e a terra flutue –

Mas não o olhes na cara enquanto fodes
E as asas, rapaz, não lhas amarrotes.

Bertolt Brecht (tradução de Aires Graça)