sábado, 29 de outubro de 2016

Lírico-caipira

Não me furto jamais à cor de teus óio,
antes havera furtado a paisagem e o fogo
de Deus lá em riba.

Antes havera descido ao fogo dos
quintos do lá-embaixo,  adonde o manhoso
dorme acordado.

Apois que amor é um pouco disto-aquilo,
andar sempre em haver co' bem-amado,
mei' sem rumo.

Luis Gustavo

domingo, 9 de outubro de 2016

Entre o farol e a neblina

Antes de ser acordado pelo relógio, dobrei uma esquina. E atrás da neblina baixa e densa, você sorria: os olhos abertos, escuros e com um brilho muito forte. São, quem sabe, os faróis de um carro - pensei. Subindo o meio-fio, vi seu rosto com clareza: branco, molhado e ainda sorrindo. Mas não era um sorriso dado. Era antes uma marca de dentes, um sorriso armado e eterno. Assustei-me. Toda essa neblina - disse a mim mesmo - bem podia ser as águas do trópico de sal, anos atrás. Qualquer coisa de molhada, espessa e de cortina. Qualquer coisa meio silenciada e meio dita. Um rumor sereno e incômodo. Bem podia ser, esta rua - como este meio-fio - os fechos da fazenda marinha, em cuja portinhola eu botava as cartas pra você. E a sua aparição bem podia ser a mesma: fugaz, derradeira, finita. E os olhos que brilhavam, faróis de um carro, bem podiam ser outros faróis. Os que se pescam em noite escura, fora da superfície, no continente. Na condução de embarcações pela baía. Na guarida de almas humanas desembarcadas, habitantes de um naufrágio. Ou ainda na proteção dos guardas do próprio farol, munidos de vodka e um radinho de pilha. Em tudo a sua aparição me parecia coisa antiga, datada. Como uma carta que eu deixasse de postar e, incomodada, se insinuasse para fora das gavetas. Eu que sempre quis colher as camélias do sonho. Que sempre quis sonhá-las tanto, com tal força e convicção que pudesse impô-las à realidade. Eu, que aprendi as manhas do sonho, que inventei as regras do jogo, não pude resistir à vigília. Veio o som do relógio, a luz da manhã e dissolveu, como em todos os domingos, os faróis, as ondas, a neblina espessa, tudo.

Gustavo